segunda-feira, 11 de abril de 2011

Caros, conforme prometi, estou postando, hoje, o texto de um amigo.

Miro Cardoso é poeta, quadrinista e cronista. Escreve para O' AVESSO, jornal publicado mensalmente em Ourinhos.

Além de talentoso é o amigo com quem discuto todo o meu trabalho artístico. Foi meu professor de Inglês no ginásio e é um dos poucos que ainda escrevem cartas, somente pelo prazer de passar a língua no selo, como ele mesmo diz.

Acho este texto primoroso.

Encantem-se.

                                                                 
                                                   As duas Marias


                                                      imagem: reprodução

Miro Cardoso

            Na puberdade, conheci duas Marias: Quitéria e Natalina. Ambas, concorrentes profissionais, desfilavam em calçadas opostas de uma mesma avenida. Enquanto uma subia, a outra descia perfumando as várias esquinas.
      Nunca se soube de qualquer documento que revelasse a origem ou a idade das duas beldades. Não tinham sobrenomes, só alcunhas: “Carro Alegórico” e “Árvore de Natal”.
      Solteironas por convicção, vaidosas e com semelhantes objetivos viviam de bicos, brindes, doações e presentes.
      Nas proximidades da passarela que pleiteavam dias, noites e madrugadas, de um lado morava Quitéria e do outro Natalina. O lar de cada uma delas resumia-se num quarto e banheiro. A sala era a cidade; a cozinha uma cantina; a copa um botequim; o corredor uma rua; o quintal uma praça; a garagem um meio-fio e na área-de-serviço... só prazer.
      A vida cobrava-lhes simpatias e sorrisos constantes. Nunca podiam estar tristes, por isso cantarolavam Dalva e Lana para confortar os males.
      Sem computadores, elas passavam horas e horas diante dos espelhos orlados de fotos e bilhetes – os facebooks e e-mails da época. E os seus celulares? Eram as escovas de cabelo.
      As felizes eram livres, pois não dependiam de planejamentos, pontos, conselhos, diários e justificativas de suas ausências ou das reprovações de seus clientes.
      As duas Marias sempre protegidas por bons cremes, ousadas tinturas, transparentes tecidos, balangandãs e saltos-altos tiveram vida longa. Sobreviveram mesmo sob soslaios olhares das fêmeas e cobiçados cortejos dos machos.
      Embora imortais, a primeira Maria morreu em pleno Carnaval e foi enterrada na Quarta-feira de Cinzas. A seu pedido, no velório não havia flores ou coroas. Aliás, ela odiava coroas.
      Cobriam a maquiadíssima defunta: cravejados óculos gatinho, berloques, brincos, bijuterias, bolsas, cintos, lenços e tiaras. Nos ombros as alças finas do vestido amarelo-ouro, nos braços braceletes, nos pulsos relógios com a hora marcada, nos dedos toda sorte de anéis e unhas de causar inveja. Nos pés as tiras douradas das sandálias.
      Purpurinas, confetes e serpentinas salpicavam o ambiente do teto ao chão. E assim, Quitéria, ao som de marchinhas seguiu pro céu cheirando a lança-perfume.
      Dez meses depois, durante a Missa do Galo, digo, da Galinha, morreu Maria Natalina. Nada de flores ou velas. Só fitas, bolas, laços, guirlandas e pisca-piscas decoravam o caixão verde-pinhal.
      A falecida harmonizava-se nos tons rubros e neves do casquete, véu, bustiê, mini-saia, meias arrastão, sombrinha e sapatilhas. Entre as mãos, a boceta de rapé e o porta-jóias de cristal. Tudo subiu aos céus ao som de Jingle Bells e cheirando a leitoa assada.
      Quando dizem que não se leva nada dessa vida... Discordo! Maria Quitéria e Maria Natalina levaram tudo que amaram, inclusive meu coração.


15 comentários:

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  2. Grande Miro!!! Simplesmente lindo...TERE

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  3. "Amei e compartilhei". ABILSON DE MENEZES

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  4. Miro é o máximo. Lindo poema, como tudo que vem (ou será sai?)de Miro. ERALDO S.

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  5. Amei...maravilhoso! KIKA DA SILVA

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  6. Queria mesmo é ser uma Maria com toda dignidade de qualquer uma dessas do Miro. Adorei...Bjus. JAN

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  7. Jan, sua dignidade é incontestável. Adorei o comentário! bjão. PI

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  8. maravilha!SILVIO ANDRADE

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  9. "Pí, nós que conhecemos como conhecemos, não poderia deixar de postar este comentário, pois se existe pessoa mais sensível e incrivel como ele vai demorar pra eu conhecer eu adoro ele de pedra por tudo que representa pra mim!!!!..." LINEU CHIARATO

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  10. "Se vc pensou que é uma declaração de amor é muito mais que isto" LINEU CHIARATO

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  11. Olá Pinheiro,

    Que bom receber o seu blog com o texto do Miro.
    Já coloquei o blog nos Favoritos.

    Adorei o texto, principalmente porque tratam de marias e, assim trata de todas as mulheres.
    Gosto mais do que imagino e pouco do que vejo.
    Quanto mais conheço Marx, mais admiro Platão.

    Segue o link do blog do meu grupo de teatro.
    Visite:
    http://gtscrachados.blogspot.com/

    Grande e carinhosos abraço
    DEL

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  12. Miro e suas Marias...
    que mania que elas têm
    de nos surpreender e o
    Miro de me encantar
    a cada verso, a cada frase,
    a cada virgula de seus escritos.
    ZEDU LIMA

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  13. Olá, Luiz....

    A mente criativa do Miro nos coloca diante de uma narrativa que invoca o burlesco e nos proporciona uma viagem prazerosa, não só em direção da metáfora e da alegoria, como também a um tema vinculado aos princípios do realismo mágico - viva Garcia Marques! -.
    Penso que as almas ou os fluidos restantes da "avó desalmada e sua neta" e, das " Marias "encontraram-se em algum ponto da galáxia .
    "Pulchra verba"! Um brinde ao Miro e ao seu blog .

    Zé Eduardo Faria

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  14. A NARRATIVA FLUI EM MEANDROS ENVOLVENTES, MISTURANDO A REALIDADE E AS FANTASIAS DE UM ADOLESCENTE INTERIORANO!! A RIQUEZA DE PORMENORES SOBRE AS DUAS MARIAS, SUAS VIVÊNCIAS E SUAS VESTIMENTAS MORTUÁRIAS É DE UM REQUINTE DE UM ESCRITOR MADURO, CUJO MUNDO IMAGINÁRIO É RIQUÍSSIMO!! SEU ESTILO ME LEMBRA MUITO JULIO CORTAZAR E LYGIA FAGUNDES TELES!! GOSTEI POR DEMAIS DO CONTO E CONSIDERO MIRO UM ESCRITOR NATO !!*** É ISSO QUE PENSO LUIZ.!! GRATA POR SUA GENTILEZA.!! BOM CONHECER SEU TRABALHO. GOSTEI MUITO!! BOA NOITE, ODETE PERIN

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  15. Adorei os soslaios olhares das fêmeas e os cobiçados cortejos dos machos. Boas aliterações e trava-línguas.
    Morgana do Agreste.

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