sábado, 23 de julho de 2011

Um guia para se ouvir DECOMPOR

            Recebi com muito prazer a matéria que o Luiz Chagas fez sobre meu CD. Na verdade, ele me apresentou como músico e fez uma espécie de biografia minha, bastante generosa, mas não aprofundou a análise sobre as músicas em si e meu trabalho poético. Segundo ele, havia escrito muito mais, mas teve que se restringir ao espaço fornecido pela revista. Também gostei muito de ele ter inserido o Pi, que é como carinhosamente me chamam os meus amigos. Ainda não havia sido apresentado desse modo.

      Resolvi, então, complementar a matéria e fazer um roteiro para que vocês pudessem entender um pouco mais meu trabalho.

      Gostaria também que vocês pudessem comentá-lo. Esse retorno é importante para o artista.


                                                               foto: Georgeta Gonçalves
                                                        

Luiz Pinheiro

            Meu disco se inicia com a música DO SEU LADO. É uma maneira de eu cumprimentar os ouvintes e lhes dar uma boa vinda. Quero estar ao lado deles e os quero ao meu lado. Assim tudo fica muito melhor.

      Em seguida, apresento A CIDADE NÃO É MAIS MODERNA. Parto de um outro tempo, o modernismo, que desembocou na tropicalha e que trouxe paralelamente Milton Nascimento, com sua A CIDADE É MODERNA, e vou em busca do meu caminho que se dirige para o sol, trazendo toda a melancolia já digerida, dirigindo-a para uma outra dimensão, mais comtemporânea, já absorvida a estética bossanovista e roqueira da MPB, o sol. Digo que a criança cresceu e busca novos rumos, procurando sua própria identidade, após ter se misturado a todas as influências musicais, num momento em que o caldo entornou. Junto as sobras e faço a minha sopa.

      ÓDIO NO CAMARIM, sobre letra de Eraldo S. fala de minha inserção no universo artístico e todos os sentimentos que isso pode despertar. Amor e ódio, inveja, cobiça, como motor e entrave para a criação de uma obra musical ou artística. Inspirada no camarim de um teatro. Fala sobre as emoções que um ator ou músico sente minutos antes de entrar no palco - quase como um fio desencampado, prestes a dar curto - e da necessidade de ter por perto pessoas queridas e insuspeitas. Tem como pano de fundo a relação de um suposto casal.

      HAJA O QUE HOUVER: paixão à primeira vista, há muitos anos atrás, e uma promessa de gravá-la em disco um dia.
Me transporta para uma época que não vivi mas onde fui colher frutos, influenciado pela tropicália, que me apresentou os clássicos da MPB. Interessa-me muito o lado psicanalítico da letra. É um tratado sobre sado-masoquismo, dito de um modo tão simples e popular, corriqueiro e, ao mesmo tempo, poético. Fala de uma pessoa que para se sentir existindo precisa de castigos físicos e morais. Sem isso, ela simplesmente é nada. Mostra como um sintoma tem uma verdade escondida extremamente dolorosa e como tirar algum prazer desse destino, mesmo que às custas de muita angústia.

      EU SEMPRE: mais um personagem em busca de amor, vivendo suas frustrações e compensando-as com vivências de risco e perigo, em encontros furtivos pela solidão noturna da cidade. Letra da Vanessa Bumagny da qual me apropriei. É como se eu a tivesse feito. Diferenças à parte, lembra-me um pouco o universo chicobuarqueano transmutado em um olhar muito próprio dos que hoje estão fazendo canção.

      BRASA DORMIDA: Balada dos anos 80. Ouvi muito essa canção na voz do Marcelo, um jovem surfista de carreira meteória apadrinhado por Gil, Gal e Caetano. Minha versão é mais cool. Exalta o lado melancólico da canção. Interessante que foi uma época muito feliz da minha vida, quando minha casa era o ponto de encontro dos amigos e colocávamos a vitrola pra tocar, logo de manhã, ao levantarmos.

      DOR: Canção feita na época em que era estudante de medicina e mantinha paralelamente um sonho de ser compositor. Eu e meu parceiro ouvíamos muito Nana Caymmi e acho que ela tem uma certa influência sobre essa composição.

      SOMBRA NEGRA: Primeira música que fiz e classifiquei como brega. Como tem uma letra muito bem elaborada, aquele aspecto fica encoberto pelo literário. Meus amigos gostam muito e não a acham brega. Quando compus pensei na possibilidade de Bethânia cantar. Depois, com o arranjo do Valter Gomes ela foi ganhando uma alma roqueira.

      UMA ALMA QUE VOA: Letra do Boave, com melodia minha. Não é percebida pelos ouvintes em uma primeira audição, mas é uma das que mais gosto do disco. Sugiro que as pessoas ouçam com mais atenção para que possam usufruir dessa estética sonora. Tenho uma relação afetiva muito grande com o Rio e ela passeia pela paisagem carioca. Gosto muito do arranjo e das frases musicais do Valter na sua guitarra. É um dos arranjos que a banda mais gosta e toca com muito prazer. Tem um quê de oriental que remete à ascendência árabe do Wally Salomão, a quem o poema é dedicado.

      CINZAS: Mais uma letra da Vanessa da qual me apropriei. Aborda as questões existenciais de vida e morte. O que seremos depois. Cinzas têm dúvidas? Que são as cinzas, para onde vamos após a morte? O que é de tudo que foi vivido?

      POESIA: Minha posição estética diante da poesia. Influência direta do Concretismo.

      POÉTICO/PATÉTICO: Influência do Walter Franco e também do concretismo, onde tento reduzir o poema a apenas palavras que se combinam por similaridade e oposição. Não há verbo e quase não se formam sentenças. É a força da própria palavra, seu som e significados que dão o tom da coisa. É direto na veia, mas devagar, no suingue.

      VíCIO: Poderia-se dizer que é um poema com forte tinta psicanalítica, abordando o vício sem preconceitos e moralismo. Simplesmente pensando seus mecanismos, sua estrutura a partir de experiências próprias tanto no campo profissional como pessoal. Vício aqui não se restringe só às drogas, mas a tudo que se repete compulsivamente e faz com que a pessoa não tenha mais domínio de si, é tragada pela repetição e vai deixando de ser uma pessoa, para se tornar um vulto. Auto-boicote, supressão de si mesmo. Acho interessante que a profundidade do tema não tira o prazer de cantá-la alegremente.

      PHEDRA DE CÓRDOBA: Canção em homenagem à atriz Cubana Phedra de Còrdoba, atriz do grupo Satyros que sacudiu a cena cultural da pça Roosevelt. Foi nesse teatro que retomei minhas incursões musicais com o apoio do Rodolfo Varquez e do Ivam Cabral. Phedra no palco é algo inexplicável. Só vendo.

      AS IMPUREZAS DA RUA SEM VÉU: Uma declaração de amor à praça que serviu de laboratório para minhas experiências musicais e meu retorno à cena musical. É um yê yê yê,  o primeiro ritmo que, na minha juventude, fez-me interessar por música popular e me despertar o desejo de fazer canções. Tudo se junta nessa canção. Meus sonhos infantis e minhas realizações adultas. Ela foge um pouco do clima subsolo do disco, mas resolvi incluí-la porque o tema fala também de um teatro underground, de um grupo que ousou enfrentar todas as restrições a seu trabalho e se impôs.

Embora o disco contenha vários ritmos, podendo ter corrido o risco de cair numa salada amorfa, o viés poético e o universo temático, canções do subsolo, lhe dá a unidade necessária a uma obra artística no sentido mais puro da palavra.

Todo o resultado sonoro foi meticulosamente pensado por mim e Valter Gomes, um músico de enorme talento e que precisa ser descoberto.