sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Sobre Cegonha, Iracema e Hermelino





Imagem: Reprodução

Luiz Pinheiro



“O pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa, quando começa a pensar”. (Lupicínio Rodrigues)



     Hermelino Neder me aconselhou a não postar no blog o trecho do meu texto “Cegonha” quando digo: sua linda cachorra de “pelos mais negros que as asas da graúna", referindo-me à Duquesa, adorável cachorra do Newton Carneiro. Achou que era over, além de parecer “frescura”.

     É que ele não se deu conta de que se tratava de uma citação do romance de José de Alencar “Iracema”, primeiro livro que li no ginásio e do qual decorei o primeiro capítulo inteiro.

     Achava que todos que leram “Iracema” iriam se lembrar dessa expressão. É como citar “olhos de Capitu”, que naturalmente nos remete à obra de Machado de Assis. Mas, como meu amigo não a tinha na memória, fiquei em dúvida se seria tão óbvio assim.

     E como ele estranhasse que eu soubesse de cor o texto, comecei a recitar todo o primeiro capítulo do livro, ao telefone. Digo recitar porque é uma prosa poética, romântica, tipo:

“Verdes mares bravios de minha terra natal onde canta a jandaia nas frontes da carnaúba; Verdes mares que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros”. E por aí vai.

     Também sei, até hoje, como termina o romance:

     “Tudo passa sobre a terra”.

     Se me pedissem para contar a história, não saberia. Lembro da paixão de um guerreiro europeu por uma índia. Nada mais.

     “Iracema”, entretanto, ficou reverberando na minha cabeça e o comentário do Hermelino me provocando um certo incômodo.

     Liguei para minha amiga Sandra Alves que me disse, brincando, que o Hermelino deve ter faltado a essa aula. Ela se lembra perfeitamente da época em que lemos esse livro (estudávamos todos juntos). Acrescentou que o texto fala sobre ousadia, liberdade, contravenção, conflitos, submissão, amor impossível e dor de amor, além da preocupação do autor com a forma da linguagem.

     Achei que tinha tudo a ver eu ter citado essa obra, inconscientemente, no primeiro texto sobre meu CD. Os mesmos temas se encontram nele.

     Até aí, são temas universais, mas talvez a forma como são expostos em “Iracema”, tenha me interessado de modo particular, a ponto de decorar um trecho.

     Ou será que era lição de casa? Poderia ser simplesmente vaidade juvenil. E por que não uma precoce prevenção contra o Alzheimer?

     De qualquer modo, tenho um certo orgulho por lembrar o tal primeiro capítulo inteiro sobre Iracema, “a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira”. Não é bacana?

     A essa altura, talvez os leitores se perguntem para que serve tudo isso. Talvez só sirva para animar festinhas ou fazer “gênero” em saraus. Nem isso! Deve ficar esquisito e meio ridículo recitar o primeiro capítulo inteiro de “Iracema” no meio de uma festa ou evento. Acho que não pegaria bem.

     Será que, assim como Lobão, Hermê tem razão?

     Talvez tenha, mas em outro aspecto: disse-me que provavelmente eu traga esse romance tão “fresco” em minha memória - e ele não - devido ao fato de ser quase um poema.

     E eu sou mais poema. Ele, prosa.

     Mas será que ser afeito a poemas seria “frescura”? Ou estaria ele se referindo à tinta romântica que se derrama sobre o fraseado da obra de Alencar? Pelo que conheço do meu amigo, achei mais provável a segunda hipótese.

     Posteriormente, disse-me que o que achou over foi eu usar aquela frase rebuscada na simplicidade do texto “Cegonha” que, justamente, ele estava apreciando.

     O texto do Hermelino é mais seco e o meu mais úmido. Mas não é propriedade do poema ser úmido e nem da prosa ser seca, pois João Cabral é seco e é poema e a prosa romântica tende a ser úmida. Umidades e securas e “frescuras” à parte, texto ou poema, o importante é ser arte.

     Minha amiga Sandra, como sempre, esclareceu e enriqueceu-me com algumas informações que, gentilmente, foi garimpar. Disse-me que um crítico sisudo do século XIX, José Veríssimo, afirmou:

     “Foi José de Alencar o primeiro dos nossos romancistas a mostrar real talento literário e a escrever com elegância. Ele é cronologicamente o primeiro que, por virtudes de ideação e dons de expressão, mereça plenamente o nome de escritor”.

     Guilherme de Almeida, em um texto sobre esse romance, conta que “Iracema” era para ser escrito em versos e que, na própria prosa, podemos encontrá-los metrificados em redondilhas maiores, decassílabos e alexandrinos. Comparando a poesia de Gonçalves Dias com a prosa de Alencar, ainda diz: “Não teria sido Alencar também um poeta indianista e feito também poesia?”

     E conclui: “Todo pensamento comovido e trabalhado tende, naturalmente, a tornar-se verso”.

     O que mais me surpreendeu foi Almeida dizer que o texto de “Iracema” é uma prosa mais elevada. Seria, então, a poesia mais elevada que a prosa? Temos aí uma questão que daria uma ótima polêmica. Mas isso vai ficar para um outro momento.

     Eu e Hermelino temos uma amizade de muitos anos, extremamente produtiva pessoal e artisticamente. Ele é o principal responsável por meu exercício de cancionista. Sempre faz comentários muito esclarecedores e estimulantes sobre o que crio. Às vezes, carinhosamente provocativos.

     Bastou uma observação dele para eu resgatar José de Alencar e ficar sabendo de coisas que eu nem imaginava. É bom ter amigos inteligentes e sinceros.

     Uma última pergunta: se “Iracema” é o livro de um precursor e um marco na história do romance brasileiro, estaria minha citação, no texto de nascimento do meu CD, denunciando um desejo inconfessável de atingir tão alto posto, com seu simples lançamento?

     Seria muita onipotência, ingenuidade e... narcisismo! Talvez, forçando um pouco mais a barra, aí, sim, caberia a tal da “frescura”. Mas assim já é demais! Fui over.

Que viagem!

Como é duro ser psicanalista!

3 comentários:

  1. A simplicidade e a generosidade com as quais você escreve me emocionam e me levam a caminhos e lembranças ....

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  2. Que delícia ouvir você falando e antecipar a escuta das músicas.... Bom esse jeito de arremedar uma conversa!!!

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  3. GRANDE PINHEIRINHOOOO!!!! E GRANDE HERMELINO, lógico.

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