Luiz Pinheiro
Fui assistir à pré-estréia do filme Filosofia na Alcova, do grupo Os Satyros. Sexta chuvosa, com platéia lotada. Acompanho o trabalho do grupo desde quando a praça Roosevelt ainda não era o polo cultural que se tornou, graças a Ivam e Rodolfo e a outros artistas que sempre lutaram pelos seus ideais , contra o preconceito, acreditando em sua arte.
Incrível como o trabalho do Satyros vai se tornando história. Antes apenas no teatro, passando pela TV e agora no cinema. Se a primeira incursão do grupo no cinema, com "Hipóteses para o amor e a verdade" já havia me impressionado, "Filosofia na alcova" me ganhou definitivamente. É nítida a evolução em termos de linguagem cinematográfica de um trabalho para o outro. Se em Hipóteses há uma promessa, aponta-se um caminho, em "Filosofia" o cinema desabrocha. Se no primeiro trabalho as linguagens ainda se mesclam e se mostram fragmentadas, no segundo tudo se integra, a trilha sonora, o texto e a imagem, formando um todo coeso e consistente, com uma estética inovadora. Isso nos leva a crer que os diretores percorrerão no cinema o mesmo trajeto que já fizeram no teatro, aprimorando-se a cada trabalho.
Conheço pouco a obra do Marquês de Sade, mas me deu vontade de explorá-la, a partir dessa experiência cinematográfica.
Após a projeção muitos ficaram para uma conversa com os diretores e atores. Deu para perceber a complexidade do tema abordado, pela dificuldade de as pessoas expressarem suas impressões sobre o filme, como se faltassem palavras para traduzir o impacto sentido durante a sessão. Havia muito a se dizer, mas muito mais a digerir. Creio que isso se deve porque a obra de arte é aberta, nos incita a exercitar a reflexão e se coloca para ser explorada sob vários aspectos.
A discussão tentou abordar a questão da repressão, da crítica ao moralismo cristão, sob o ponto de vista filosófico ou político, fazendo uma ponte entre a época em que "Filosofia na Alcova" foi escrita e a atual . Falou-se sobre o que se entendia por libertinagem, chegando até a compará-la à liberdade.
Pensei sob o ponto de vista psicanalítico. O termo Sadismo foi criado a partir a obra de Sade, e quer dizer o ato de provocar e ter prazer através da dor, do controle, da submissão do outro , externando impulsos destrutivos, proveniente de pulsões de morte.
Ao se voltar contra a moral cristã, o autor expõe sua própria moral às avessas, num embate de forças contrárias, mas que devido ao radicalismo acaba expondo sua fragilidade e igualando o crítico ao que critica. Evoca-me a situação atual do país onde é quase impossível a convivência de pensamentos opostos . Para que um exista é preciso aniquilar o outro. Expõe-se assim o ódio que vem da intolerância e se desemboca no fundamentalismo. E onde o ódio impera, o amor se degenera. Há uma fala durante o filme que diz que o prazer só tende a aumentar com a diminuição do amor. Pois onde não há amor, não há erotismo e sim pornografia. Mas também não é tão simples assim, porque a pornografia é destituída de qualquer sentido, de ideal. Já em Sade ela está a serviço de algo "maior", querendo criar uma aura de heroísmo aos libertinos, que lutam contra uma sociedade hipócrita e repressora. Mas pecam por se mostrarem tão repressores e agressores quanto essa sociedade, na medida em que tentam eliminar aquilo com o qual não concordam e submeter o outro à sua "religião".
Alguém disse que os libertinos não matam. Questionei-me sobre isso, pois no filme eles não atuam seus impulsos assassinos diretamente, mas levam o outro a atuarem por eles. É como o caso de suicídas que não sujam as mãos, mas levam o parceiro a executarem-no .
Poderíamos , no caso , pensar que os libertinos apenas estariam testando a personagem Eugenie, para ver se ela é uma autêntica libertina ou apenas aquela que "se entrega demais às paixões", quando a incitam ao crime. Mas seria raso pensar apenas por esse vértice. Havia ali uma intenção assassina, explicitada em algumas falas. Aliás pouco se falou de morte, nos comentários, apenas se passando perto ao estranhar a melancolia e apatia que se instaura após a excitação.
Vi muita morte o tempo todo, na medida em que nas relações que ali se estabelecem não há nenhum vínculo amoroso, apenas ódio e destruição. Acho que é esse aspecto que se ressalta no conceito de Sadismo e é o que se manifesta em muitas ideologias e religiões fundamentalistas que em nome do amor e da humanidade se cometem barbaridades.
Vi muita morte o tempo todo, na medida em que nas relações que ali se estabelecem não há nenhum vínculo amoroso, apenas ódio e destruição. Acho que é esse aspecto que se ressalta no conceito de Sadismo e é o que se manifesta em muitas ideologias e religiões fundamentalistas que em nome do amor e da humanidade se cometem barbaridades.
A personagem Eugenie, ainda sem uma personalidade consolidada, é presa fácil de um mundo onde a sensualidade se mostra como alternativa a uma vivência de vazio, de falta de representação, que a faz se sentir viva na excitação. Ela não é uma libertina verdadeira.
Muito se fala nos efeitos malignos da repressão, mas toda a sociedade se instaura a partir dela, e sem ela seria extinta. A questão está na dose. Excesso de repressão é morte, assim como excesso de prazer também. Há uma dialética entre pulsões de morte e vida, uma não existindo sem a outra. Uma negando e afirmando dialeticamente a outra. Assim como céu e inferno, esquerda e direita, consciente e inconsciente. Nenhuma é o mal em si, mas a convivência e a integração é o que se deveria tentar atingir, para que o mal não se instaure.
São tantas as possibilidades de abordagem que talvez seja isso o que torna a obra de Sade tão complexa, provocadora e inquietante. Ela vai fundo nos sentimentos humanos, tão maravilhosos e infernais, paradoxais em sua essência.